UNIVERSIDADE? O QUE É ISSO, PROFESSORA?

 

CLÁUDIA MARIZA MATTOS BRANDÃO*

 

Resumo

Neste artigo busco discutir a realidade do processo educativo em nosso país, tendo como principal enfoque a instituição de ensino universitário. Procuro, também, refletir sobre a importância da reformulação de nosso sistema de ensino, para a instauração da prática de uma cidadania ecológica, como base para as transformações sociais, políticas e econômicas exigidas na contemporaneidade.

 

 

PALAVRAS-CHAVE: Universidade, educação e cidadania.

 

 

            A história de uma sociedade é construída pela sucessão de épocas, cada uma delas com aspirações, necessidades e valores característicos. Quando os temas essenciais que motivam o homem na busca de sua realização plena, como indivíduo e cidadão, começam a esvaziar-se e a perderem seus significados, ou seja, quando surgem novos valores e aspirações que se opõem aos anteriores, diz-se que a sociedade está em transição. Está delimitado o início de uma nova época, diferente da anterior.

 

            Há quinhentos anos atrás, quando do surgimento das primeiras universidades, a Europa tomou a dianteira na corrida pelo desenvolvimento, por prezar a liberdade individual, a curiosidade e a criatividade, assumindo uma atitude positiva em relação ao trabalho. Com o desenvolvimento técnico-científico desencadeado pela Revolução Industrial, a qualidade do ensino universitário tornou-se o diferencial entre as nações na disputa pelo tão esperado progresso. Hoje, estamos diante de uma nova revolução, baseada na informática e nas tecnologias de ponta. Testemunhamos uma mudança profunda na sociedade, que exige o apoio de um sistema educacional eficiente e criativo. Nesse processo é impossível negar-se a importância do fenômeno da globalização, o qual, propondo a diluição das fronteiras nacionais, intensifica a uniformização da cultura e padroniza comportamentos. 

 

            O historiador americano David Landes, autor do livro “A Riqueza e a Pobreza das Nações”, considera que a humanidade se divide em duas classes: a dos que vivem para trabalhar - e através do trabalho constroem sua identidade - e a dos que apenas trabalham para sobreviver. Ele acredita que quanto mais pessoas do primeiro tipo houver, mais chances uma nação terá de sair ganhando no jogo da globalização. Como professor da universidade americana de Harvard, ele dedica-se a desenvolver a idéia lançada por Max Weber, de que a cultura e os valores de um povo são tão ou mais importantes para o seu crescimento econômico do que os fatores materiais.

 

            O desenvolvimento das sociedades pós-modernas apresenta um ritmo vertiginoso, e apostar em investimentos culturais e sociais capazes de formar indivíduos aptos a serem inventivos dentro da nova realidade social, política e econômica, torna-se uma prioridade. No Brasil, a ausência das grandes massas do âmbito das discussões ecológicas e sóciopolíticas demonstra a emergência de uma mudança de mentalidade. Esse fato está intimamente relacionado a transformações no sistema de ensino, pois estimular a consciência crítica da população prevê ações educativas. Nossa realidade educacional configura um processo fragmentado e compartimentado, o qual ajusta e acomoda o educando, não priorizando o desenvolvimento da reflexão crítica, subjetiva e íntegra. A formação de nossos estudantes é deficiente do ponto de vista qualitativo e quantitativo, tanto no que se refere aos conteúdos desenvolvidos, como ao número de vagas oferecidas pelo ensino público.

 

            O texto que segue, divulgado pelas associações de classe SINTEST/RS, ASSUFMS/Seção sindical e APTAFURGS/Seção sindical, em julho de 2000, demonstra a situação de confronto vivida pela universidade atualmente: se por um lado, a sociedade faz cada vez maiores exigências em favor de transformações profundas nessa instituição, que possibilitem um desempenho compatível com os novos contextos, por outro, as políticas do poder público apresentam-se cada vez mais restritivas. As reivindicações dos profissionais da educação de todos os níveis sucedem-se, sem que o poder constituído demonstre um empenho efetivo em modificar esse quadro desalentador.

 

A UNIVERSIDADE PÚBLICA  NA CORDA BAMBA:

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  A Universidade pública sobe ao picadeiro trazendo atrações bem manjadas, mas que muita gente ainda não conhece. Entre elas estão o achatamento salarial de professores e funcionários, o sucateamento do patrimônio e a fuga de mestres para o ensino privado. Apesar disso tudo, a Universidade pública lidera em quantidade e qualidade o volume de pesquisas e acontecimentos produzidos.

Neste espetáculo de absurdos, informe-se[1] e defenda o que é seu. Defenda uma

UNIVERSIDADE PÚBLICA e GRATUITA.

 (SINTEST/RS, ASSUFMS/Seção sindical, APTAFURGS/Seção sindical)

 

            A leitura desse texto avivou minha memória e recordei um fato ocorrido há algum tempo. Questionada por uma aluna, sobre a inscrição existente numa camiseta usada por mim: “A cidade do Rio Grande já está de luto. A FURG pode morrer”, expliquei que estava defendendo o direito que todos tinham de freqüentar uma universidade gratuita. Fiquei surpresa e chocada com a pergunta que veio a seguir: O que é universidade? Eu não sei, professora! Essa pergunta me pareceu mais absurda, por partir de uma adolescente moradora do bairro onde a FURG está inserida. Como arte-educadora, atuando numa escola que atende um público constituído por crianças e adolescentes em situação de extremo risco social, esse questionamento me conduziu a outra reflexão: Qual a função e a abrangência da ação educativa de um professor numa escola de periferia?

 

            Nossa realidade escolar está alicerçada numa estrutura que prioriza a repetição de modelos, um processo mecânico onde se sobressai o automatismo das ações, um ensino com caráter predominantemente científico e com informações compartimentadas. Essa setorização bloqueia e atomiza a capacidade indagativa, perceptiva, sensorial e afetiva de nossos alunos. Como órgão promotor e divulgador da cultura e da ciência, a escola é um dos importantes agentes transformadores da sociedade; cabe a ela desenvolver e incentivar o exercício da crítica e da reflexão, ressaltando a importância da comunidade e de cada um como agente potencialmente transformador de seu contexto.

 

            O gradativo desmonte promovido pelo governo federal nas universidades públicas nacionais, e no sistema de ensino como um todo, aumenta cada vez mais a lacuna entre ricos e pobres. Dentro desse panorama, a função de um professor de periferia assume proporções diferenciadas; muitas vezes, representamos a grande - talvez a única - oportunidade que os alunos possuem de modificarem sua realidade adversa. Além de transmissores do conhecimento técnico e científico, somos uma das fontes de informação disponíveis para ajudá-los a decifrar os códigos intrínsecos e caóticos da pós-modernidade.

 

            De acordo com a opinião de Paulo Freire, o povo brasileiro, com excessão de uma pequena elite intelectualizada, possui uma consciência intransitiva, ou no máximo, uma consciência transitiva ingênua. Esse fato determina uma quase impermeabilidade aos problemas e aos estímulos situados fora da esfera do biologicamente vital e uma quase ausência de consciência histórica na maioria da população.

 

            Os elementos constitutivos da realidade brasileira: a situação de uma sociedade em transição, a persistência de uma mentalidade acrítica e a inexperiência democrática, demonstram que o país precisa buscar a democratização da cultura, como marco geral de uma democratização fundamental. Um dos sintomas da inexperiência democrática é a dificuldade que grande parte da população encontra ao tentar reconhecer os temas e as tarefas inerentes aos atores sociais; em geral, sabe somente que existe uma elite que as interpreta e as apresenta como receitas, como prescrições a serem seguidas.

 

            O nível de consciência crítica que uma sociedade apresenta no momento de refletir sobre as questões sociais, econômicas e políticas que regem seu cotidiano, pode tornar-se um sério obstáculo para seu desenvolvimento; desenvolvimento esse, que não implica somente questões técnicas, de política econômica ou reformas estruturais, mas sim, o passar a uma nova mentalidade, uma nova época. Somos uma sociedade em abertura, na busca de um diálogo autêntico nas relações entre os homens, entre as categorias e os grupos sociais, embora ainda sejamos um reflexo de outras culturas: uma sociedade alienada, por ser objeto e não sujeito de si mesma.

 

            Uma grande angústia, para mim, é perceber que a indiferença parece ser a palavra chave para muitas sociedades do novo milênio. O homem contemporâneo é dominado pela força dos mitos e governado pela mídia. É necessário descobrir e tomar consciência do papel ativo do indivíduo na e com a realidade, da cultura como resultado do trabalho - fruto do esforço criador e re-criador - e da democratização da cultura como dimensão da democratização fundamental.

 

            A elite dominante tem tratado a educação como um supermercado: quem tem dinheiro entra e compra; quem não tem fica do lado de fora, olhando o grupo privilegiado aproveitar o que comprou. A conseqüência disso é a marginalização de um grande contingente de pessoas que enfrentarão grandes dificuldades no mercado de trabalho. A situação brasileira não é diferente da enfrentada por muitos países; como em outros lugares, existe uma enorme distância entre as classes sociais e as desigualdades chegam, invariavelmente, à sala de aula.

 

            A educação é um fato universalmente constatado em todas as sociedades historicamente conhecidas (mesmo as mais primitivas), cujo estudo é de fundamental importância para entender-se os mecanismos de reprodução, que dão estabilidade e permanência aos sistemas sociais, assim como os de criação cultural - material ou intelectual - que geram novos padrões evolutivos. Nenhum sistema social pode ser descrito e explicado sem a compreensão prévia de seus processos de formação, o que inclui a reflexão sobre as instituições de instrução formal. É preciso pensar a educação e suas instituições, no contexto da realidade do processo educativo e no de suas interações com o sistema social.

 

            Tanto Paulo Freire como Augusto Boal consideram que o homem é um ser em situação, aberto e capaz de realizar operações complexas como a de compreender a realidade e transformá-la mediante sua ação; que ele é capaz de estar no mundo, distanciar-se dele e objetivá-lo, de acordo com sua vocação ontológica de ser sujeito e não objeto. Ambos autores salientam que o homem é o criador da cultura e da história, e que o saber será seu campo de batalha e o suporte de sua experiência dialética com o determinismo e com a liberdade, sendo sua capacidade reflexiva - a possibilidade de pensar sobre sua própria essência - o que lhe conferirá a faculdade da libertação, como um desvelar crítico da realidade.

 

            O homem brasileiro precisa descobrir-se “autor” do mundo, criador da cultura e integrante ativo da rede sistêmica universal, sendo que a democratização da cultura - o amplo acesso à informação - é a via de acesso para que ele realize verdadeiramente sua vocação ontológica: a de inserir-se na construção da sociedade, em busca das transformações sociais; substituindo assim, a captação e compreensão mágica e ingênua da realidade, por uma cada vez mais crítica.

 

            A dinâmica da contemporaneidade e o processo de aculturação gerado pela globalização provocam um jogo de dissolvências, distanciando o homem cada vez mais de seu modo ancestral de relacionamento com os outros e com a natureza. Hoje, temos consciência de que o progresso tecnológico desencadeado pela revolução industrial, que acarretou uma desmedida exploração do meio natural e uma degeneração progressiva da paisagem urbana, não é uma capacidade infinita de aprimoramento humano, nem conseqüência natural do processo histórico. Na tentativa de minimizar os efeitos de uma convivência hostil entre homem e meio, as iniciativas apostam na evolução da técnica associada à reflexão teórica - tratada com base nos fundamentos culturais e educacionais -, procurando sempre assegurar os valores morais como afirmação da identidade do sujeito, num fazer ético.

 

Com as lutas sociais e políticas dos últimos séculos, com a conquista da educação e da cultura como direitos, a universidade tornou-se também uma instituição social inseparável da idéia de democracia e de democratização do saber: seja para realizar essa idéia, seja para se opor a ela, a instituição universitária não pôde furtar-se à referência à democracia como idéia reguladora, nem pôde furtar-se a responder, afirmativa ou negativamente, ao ideal socialista (Chauí, IN: Trindade, 1999: 217).

 

            A instituição universitária surgiu da unificação do ensino superior em um só órgão e, de acordo com Luckesi, seu objetivo era o de manter a unidade do conhecimento básico para todas as especialidades e proporcionar aos futuros especialistas uma formação inicial unitária e geral, tornando-se assim, instrumento de diferenciação cultural e política. Com as transformações ocorridas no mundo ocidental, a partir do século XVIII, e com o desenvolvimento industrial capitalista dos séculos seguintes, essa instituição educativa tornou-se uma exigência, não só da vida cultural e política, mas também, da vida social e econômica. A complexidade da vida na sociedade industrializada diversificou as exigências para a inserção dos indivíduos na vida moderna e aumentou as carências para a manutenção dessa mesma sociedade. Com o avanço dos meios de produção e a crescente sofisticação tecnológica da sociedade contemporânea, a ampla formação do indivíduo, que não se esgota com a educação fundamental, transformou-se em requisito mínimo para sua plena integração social.

 

Como instância superior na posse sistemática e organizada do conhecimento, a Universidade é um instrumento de liberação dos canais para o exercício da cidadania, que prepara os indivíduos para manejarem com maior competência e eficiência suas funções diferenciadas na sociedade. Frente à complexidade da vida social contemporânea, o acesso a essa instituição não pode ser privilégio das classes mais abastadas, pois isso significa excluir-se de antemão a maioria, ou limitar-se à reprodução do saber elaborado em outras realidades, o que impede a construção de uma personalidade universitária livre e crítica. Para superarmos a crise gerada por um pensamento linear e reducionista é necessário redefinir o papel da universidade dentro do contexto histórico, social e político da pós-modernidade. É preciso investir na construção de uma instituição com identidade própria, acessível à maioria, e que instigue o indivíduo a reformular pensamentos e a refletir criticamente sobre a realidade.

 

            “Universidade - respondi para minha aluna – é a porta de acesso para um futuro melhor!”

 

 

BIBLIOGRAFIA

BENITO, Agustín Escolano (coord.).  História  de  la  educación  I. Dicionário  de Ciências  de la Educación. Madrid: Anaya, 1984.

BENJAMIN, César. [et. al.]. A Opção Brasileira. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998.

BOAL, Augusto.Teatro Do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1983.

FREIRE, Paulo.   Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. Coleção Leituras.  São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GADOTTI, Moacir.  Escola Cidadã.  4ª ed. Coleção questões de nossa época; v. 24. São Paulo: Cortez, 1997.

LUCKESI, Cipriano Carlos...(et al.). Fazer universidade: uma proposta metodológica. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 1991.

MORIYÓN, F. G. (org.) Educação Libertária: Bakunin e outros. Porto Alegre, RS: Artes Médicas, 1989.

PELUSO, Luis Alberto. O Projeto da Modernidade no Brasil: o compromisso racionalista dos anos 70. Campinas, SP: Papirus, 1994.

PETRAGLIA, Izabel Cristina.  Edgar Morin: a educação e a complexidade do ser e do saber. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

RODRIGUES, Neidson. Lições do Príncipe e outras lições.  16ª ed. Coleção questões da nossa época; v. 15. São Paulo: Cortez, 1995.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 1997.

TRINDADE, Hélgio (org.) Universidade em Ruínas: na república dos professores. Petrópolis, RJ: Vozes / Rio Grande do Sul: CIPEDES, 1999.



·         Arte-educadora; Mestranda em Educação Ambiental – FURG, Rio Grande (RS), Brasil.

·         attos@vetorialnet.com.br 

[1]  O grifo é meu.


Projeto Apoema - Educação Ambiental

www.apoema.com.br